Respeitosamente, às almas suicidas.
No momento o assassino avançava numa campina. Era uma noite incomum! Havia uma claridade tênue originada por detrás das nuvens rosadas que pairavam sobre o imenso descampado. Um sentimento de incapacidade assomou o coração do homem. Queria chegar à luz, mas - se nada de extraordinário acontecesse - seria impossível. Resignou-se quanto a isso.
Ele lamentava o que fizera minutos atrás. Trazia no peito uma angústia lancinante. Menos dolorido seria um punhal, ele ponderou. Se estivesse vivo, certamente tentaria outro suicídio. Rapidamente aquele local sombrio lhe chegara após se matar.
Cometera o ato às duas da tarde, e no fechar e abrir de olhos, viu-se na planície erma e sombria. Escuridão, solidão e frio. De tanto perscrutar o céu, viu estranhas e imensas aves que efetuavam voos altaneiros. No momento em que tomou conhecimento dos pássaros, começou a escutar gorjeios que se assemelhavam a melodiosos conselhos para que o homem prosseguisse adiante, para o sul. Tudo pareceu sutilmente infernal.
Uma das aves do bando, talvez a maior, pousou no chão e abriu as asas num movimento inócuo. Detrás do dorso passeiforme, uma sombra diáfana esgueirou-se para o chão. O rosto da sombra era um vórtice negro que girava em círculos vaporentos. Trazia um coroa de pequeninos ossos triangulares cravados num opaco crânio desprovido de cabelos. O anfitrião translúcido assegurou que o homem deveria caminhar até atingir a única floresta que havia na planície.
O homem argumentou que não sabia onde estava. E queria essa resposta. A sombra com face vórtica pediu que ele caminhasse até a floresta. Mas o outro redarguiu, solicitando que a nódoa enegrecida o levasse para perto da tênue luz que emprestava uma coloração levemente âmbar em redor das nuvens rosadas.
A coisa que viera no dorso da ave avisou que a luz era inatingível por quaisquer seres que estivessem naquela campina obumbrosa. E incentivou dizendo: “A floresta é o local onde todo desespero e angústia terá fim.” – a voz passava um agouro indefinido.
O suicida avisou que não via nenhuma floresta. Seu interlocutor inumano pareceu ignorar a frase e flanou lentamente até a ave fantástica de bico côncavo, para alçar voo.
Enquanto subia reafirmou: “Continue caminhando nessa direção. Todos que aqui chegam são encaminhados para lá.”
“Quem é você?” – gritou o homem que se matara.
“Eu sou a escuridão”.
O homem arrepiou-se e recomeçou a caminhar. Manteve-se em movimento por mais três horas. As lembranças de sua vida o atormentavam. Julgou ter feito a escolha errada ao se matar. Os problemas financeiros não pediam essa solução. Os problemas amorosos, fora ele quem os criara ao trair sua mulher. Tudo o assombrava como tristes avejões que só incomodam e não causam mal algum.
Deixara para sua fiel esposa a tarefa de criar os dois filhos nascidos no mesmo dia e hora, e que ainda nem andavam. A sua covardia o acossava pungentemente. Era algo insuportável.
Como se livraria dessa terrível culpa era uma pergunta que se fazia constantemente. “Como suicidar-se outra vez?” – ele se indagou.
Começou a chorar logo depois que a chuva chegou. O caminhar havia ficado mais difícil. Mas não desistiu. Já divisava a floresta. Parecia tão-somente uma árvore com fenomenal copa. Uma copa tão larga e estranha que tocava o chão lamacento numa gigantesca circunferência arbórea.
A poucos metros da floresta, ele parou e olhou para cima. A sombra, voando na ave gorgeante, descia lentamente, em movimentos circulares.
Ainda no ar, ela pareceu indicar o sul utilizando uma forma opaca que poderia ser comparada à mão de um ser humano. A sombra fora obtusa quando disse: “Vai, livra-te do teu desespero ali dentro.” O suicida não se importou com a audácia do interlocutor inumano. Ganhou o ventre da floresta, ao trespassar a espessa e nigérrima copa do primeiro arvoredo.
Lá dentro, o homem viu seres inconcebíveis à compreensão humana. Eram rostos contristados incrustados nos troncos de outras taciturnas árvores. Em que pesasse a falta do desespero, não havia felicidade nos olhos daquelas criaturas. Os braços eram galhos que ficariam parados eternamente, sem direção definida. As pernas, justapostas que estavam, eram somente caules estáticos. As raízes, outrora pés que conduziram aquelas pessoas àquele lugar, suportavam, qual poleiros lúgubres, algumas aves como as que trouxeram a sombra de rosto indefinido, porém menores.
O estranho quis regressar, mas ao virar deparou-se com a sombra parada no exato vão que permitia a saída daquele local infernal. Quis correr e obliterá-la, mas seus pés já estavam bem solidificados ao chão daquela terra. A terra de uma Terra distante e sombria. O extremo do Paraíso. Assim, o suicida só pode sentir a mutação de si. E enquanto isso, a sombra passava por outra transformação. Flutuando, ela desenvolvia lenta e horrivelmente o rosto do autoassassino.
O desdobrar dos fatos foram apavorantes. O vórtice facial da sombra havia sumido. No lugar, o rosto tristonho e amargurado do suicida fora emoldurado pela coroa de ossos. Por horríveis momentos, a sombra fitou-o com enorme indiferença e desprezo. Pouco a pouco a massa umbrífera evoluiu para a invisibilidade.
A tudo o homem viu com medo. Mas ainda conservava em seu interior a angústia que se esvaía lentamente durante a metamorfose arbórea. Em minutos, ele estaria livre dos escuros sentimentos que lhe acompanhavam.
Mas antes teve a certeza que era o momento de acertar as contas que sempre ficam em aberto depois de um suicídio. As contas que o suicida crê que serão perdoadas após a morte.
Então, o horror sobreveio como um raio numa noite chuvosa. “Por quanto tempo ficaria ali? Ad eternum?” – ele se indagou.
A esperar pelo fim, restaria, apenas, uma face, uma última expressão da alma humana paralisada no tempo. Não haveria outro suicídio. Haveria, sim, apenas a última expressão de horror.
Por Pedro Pantoja