10 de novembro de 2013

A Igreja do Diabo

De uma ideia mirífica

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. 

Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua Igreja? Uma igreja do Diabo era o meio mais eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, concluiu ele. Escritura contra Escritura, Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isso, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

Entre Deus e o Diabo

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter uma vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai.

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu me proponho a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor - a indiferença, ao menos - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralista do mundo. É assunto gasto; se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias dos seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

A boa nova aos homens

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para o meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"...
O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?

Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude precisa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos.

Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo o caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do teu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniário, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!"

A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratava de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi escrito no livro da sabedoria.

Franjas e franjas

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.

O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela, solitário; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das sua ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pode crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análogo ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.


Conto de Machado de Assis

A Janela Vedada

Em 1830, a poucas ilhas do que é agora a grande cidade de Cincinnati, estendia-se uma imensa floresta quase inviolada. A região inteira era esparsamente habitada por gente da fronteira – almas inquietas que, tão logo houvessem extraído daquele ermo lares decentemente habitáveis e alcançado o grau de prosperidade que hoje em dia chamaríamos de penúria, abandonavam tudo, impelidos por algum impulso misterioso de sua natureza, e se lançavam adiante, rumo ao oeste, para enfrentar novos perigos e privações, sequiosos que estavam de recuperar o parco bem-estar do qual haviam voluntariamente abdicado.

Muitos destes já haviam trocado a região pelos povoados mais distantes, mas, entre os que ficaram, encontrava-se alguém que fora dos primeiros a chegar. Ele vivia sozinho numa habitação de madeira cercada de todos os lados pela vasta floresta a cuja escuridão e silêncio ele próprio parecia pertencer, pois ninguém jamais o vira sorrir nem o ouvira dizer uma palavra supérflua.

Suas escassas necessidades eram supridas, na aldeia ribeirinha, pela venda ou troca de peles de animais selvagens, uma vez que ele nada plantava na terra que, se preciso, poderia reivindicar por usucapião. Havia sinais de “melhoramentos” – alguns acres ao redor da casa tinham sido desmatados e os restos apodrecidos das árvores se erguiam semi-ocultos pela vegetação recente à qual se permitira remendar o que o machado devastara. Aparentemente, seu entusiasmo pela agricultura se consumira numa chama tíbia antes de apagar-se em cinzas lúgubres.

O casebre de madeira, com sua chaminé primitiva, seu telhado de ripas arqueadas dispostas sobre vigas cruzadas e calafetas com barro, tinha uma única porta no lado oposto ao da janela. Esta, contudo, estava vedada com tábuas e ninguém recordava quando é que não fora assim. Ninguém tampouco sabia o porquê da vedação. Decerto não era porque o ocupante sofresse de aversão à luz ou ao ar, já que, nas raras ocasiões em que o caçador cruzara aquele lugar solitário, o recluso, caso os céus lhe houvessem propiciado um bom tempo, fora frequentemente visto a tomar sol diante da casa. Creio que há poucas pessoas ainda vivas que saibam o segredo da janela, mas, como vocês verão, eu sou uma delas. Diziam que ele se chamava Murlock. Embora aparentasse setenta, tinha cerca de cinqüenta anos.

Outra coisa, além dos anos, contribuiu para seu envelhecimento. Seu cabelo e a longa barba cerrada eram grisalhos, tinha olhos castanhos, embaçados, fundos e um rosto singularmente sulcado de rugas que pareciam pertencer a dois conjuntos entrecruzados. Seu porte era alto e magro, com os ombros encurvados de quem carrega peso. Eu mesmo nunca o vi, e fui informado desses pormenores por meu avô, que foi quem, na minha infância, contou-me a história de Murlock. Ele o conhecera quando, naqueles dias remotos, viva em sua vizinhança.

Um dia Murlock foi achado morto em sua cabana. Como aquela não era uma época de legistas e jornais, concordou-se, suponho, que ele morrera de causas naturais, pois, caso contrário, teriam me dito e eu me lembraria. Tudo o que sei é que, talvez com um sentido do que era apropriado, o corpo foi enterrado perto da cabana, junto à sepultura de sua mulher, que, por ter morrido tantos anos antes, mal deixara na memória local um traço que fosse de sua existência.

Isso encerra o capítulo final deste história verdadeira, exceto, aliás, pelo fato de que anos e anos mais tarde, acompanhado de um espírito igualmente intrépido, aventurei-me no recanto e me aproximei da cabana o bastante para tirar nela uma pedra e sair correndo do fantasma que, como todo garoto bem informado sabia, assombrava o lugar. Há, porém, um capítulo anterior – aquele com que meu avô me presenteara.

Quando Murlock construiu sua cabana e se dedicou vigorosamente ao desmatamento com o intuito de lavrar uma roça, vivendo entrementes de seu rifle, era jovem, robusto e confiante. No país a leste do qual viera ele se casara, como era costume, com uma jovem que, em tudo merecedora de sua afeição sincera, compartilhava, de boa vontade e sem remorsos, os perigos e privações de seu destino. Não há, que se saiba, registro de seu nome. Sobre seus encantos espirituais e pessoais, tampouco há lembrança, e quem tiver dúvidas, que as tenha. Mas Deus me livre de endossá-las! Não faltaram, em cada dia vivido pelo viúvo, provas de sua felicidade e afeto mútuo; pois o que, senão o magnetismo de bênçãos relembradas, poderia ter acorrentado aquele espírito arrojado a tal sina?

Certo dia, voltando de uma parte remota da floresta aonde fora caçar, Murlock encontrou a mulher alquebrada, febril e delirando. Não havia médico num raio de muitos quilômetros, nem vizinho algum. Tampouco ela estava em condições de ser deixada a sós enquanto ele buscava auxílio. Ele tentou cuidar dela, esperando que se recuperasse, mas, ao final do terceiro dia, a mulher perdeu a consciência e, sem jamais, ao que parece, tê-la recuperado, faleceu.

Pelo que sabemos de temperamentos como o dele, podemos imaginar alguns dos detalhes do quadro cujos contornos meu avô delineara. Uma vez convencido da morte dela, Murlock manteve a lucidez necessária para se lembrar de que os mortos devem ser preparados para o enterro. Cumprindo esse dever sagrado, cometeu erros de quando em quando, fez algumas coisas incorretamente e repetiu outras várias vezes até acertar.

Sua incapacidade aqui e ali de executar uma ação comum o deixava atônito como alguém que, embriagado, não entende a suspensão de leis da natureza conhecidas. Que não chorasse, surpreendia-o e também meio que o envergonhava: decerto era insensível não chorar pelos mortos. “Amanhã”, disse em voz alta, “terei feito o caixão e cavado a sepultura; então sentirei falta dela, quando não puder mais vê-la; mas agora – ela está morta, é claro, mas está tudo bem – deve estar tudo bem, de algum modo. Nada é tão ruim quanto parece.”

De frente para o cadáver, à medida que escurecia, ele lhe arrumou o cabelo e deu os retoques finais a seu vestuário singelo. Fez tudo mecanicamente, com uma atenção despida de sentimentos. E, no entanto, uma sensação subjacente de certeza – de que tudo estava bem – perpassara-lhe a mente. Sem experiência prévia de dor, sua capacidade de senti-la não fora exercitada pelo uso. Seu coração era incapaz de abarcá-la por inteiro e sua imaginação, de imaginá-la. Ele ignorava a dureza do golpe que sofrera. Tal conhecimento viria depois e nunca mais o deixaria.

A dor é uma artista cujos poderes são tão diversos quanto os instrumentos nos quais toca seus lamentos para os mortos, despertando em alguns as notas mais agudas e penetrantes e em outros os acordes baixos e graves que palpitam repetidamente como as cadências lentas de um tambor distante. Alguns temperamentos, ela alarma; outros, entorpece. Há quem ela atinja feito uma flecha, excitando-lhe as suscetibilidades para uma vida mais ativa; há quem ela abata como uma clava que, num golpe, paralisa a vítima.

Murlock foi provavelmente afetado desta última maneira, pois (e isto é mais do que mera conjectura), assim que terminou suas piedosas tarefas, afundou na cadeira junto à mesa sobre a qual jazia o corpo e, observando quão branco o perfil se mostrava contra as trevas cada vez mais espessas, depôs os braços na borda da mesa e, sem lágrimas mas indizivelmente exausto, deixou cair neles seu rosto. Naquele preciso instante, um gemido prolongado, semelhante ao grito de uma criança perdido no fundo da floresta que escurecia, entrou pela janela aberta. Ele, porém, não se mexeu. Ainda mais próximo, o grito sobrenatural soou de novo enquanto ele desacordava. Talvez fosse uma fera, talvez um sonho. Pois Murlock adormecera.

Algumas horas mais tarde, ou assim lhe pareceu depois, a sentinela irresponsável acordou e, erguendo a cabeça deitada nos braços, ouviu atentamente – sem saber por quê. Lá, no breu escuro junto à morta, recordando tudo sem sobressalto, ele se esforçou para ver não sabia o quê. Todos os seus sentidos em estado de alerta e a respiração suspensa, seu sangue, como que colaborando com o silêncio, parara de correr. Quem ou o que o acordara, e aonde é que estava?

Súbito a mesa foi sacudida debaixo de seus braços e no mesmo instante ele escutou, ou julgou escutar, um passo leve, suave, e mais outro - sons de pés descalços pisando o chão!

Aterrorizado demais para gritar ou se mover, viu-se obrigado a aguardar – aguardar ali no escuro durante o que lhe pareceu serem séculos do maior pavor que se pode experimentar e ainda viver para contar. Ele tentou em vão pronunciar o nome da morta, tentou em vão estender a mão sobre a mesa para verificar se ela estava ali. Sua garganta estagnou, seus braços e mãos pesavam como chumbo.

Foi então que ocorreu algo assustador. Um corpo pesado parecia ter sido arremessado contra a mesa com tamanho ímpeto que esta foi empurrada contra seu peito tão bruscamente a ponto de quase derrubá-lo. Ao mesmo tempo, ouviu e sentiu algo cair no chão com um baque cujo impacto violento fez a casa inteira estremecer. Seguiram-se um embate e um tumulto barulhento impossíveis de descrever. Murlock se ergueu. O excesso de medo o privara do controle de suas faculdades. Ele lançou as mãos sobre a mesa.

Não havia nada lá! Há um ponto no qual o pavor se converte em loucura e a loucura instiga a ação. Sem intenção clara ou motivo, salvo o impulso caprichoso de um louco, Murlock alcançou com um salto a parede e, após tateá-la brevemente, pegou seu rifle carregado e, sem fazer mira, disparou. Graças ao clarão que iluminou vividamente a sala ele viu uma pantera imensa arrastando a morta ruma à janela, seus dentes cravados no pescoço dela! O que veio em seguida foi uma escuridão ainda mais negra e o silêncio. Quando ele recobrou os sentidos, o sol estava alto e a floresta melodiosa com o canto dos pássaros.

O corpo jazia perto da janela onde, espantada pelo clarão e pelo estampido do rifle, a fera o deixara. A roupa estava desarrumada; a longa cabeleira, revolta; os membros, contorcidos ao léu. Do pescoço horrendamente dilacerado jorrava uma poça de sangue ainda não de todo coagulado. A fita com a qual ele lhe atara os pulsos se rompera. As mãos estavam firmemente crispadas. Havia entre os dentes um pedaço da orelha do animal.


Conto de Ambrose Bierce