31 de outubro de 2013

A História do Necronomicon

Breve, porém completo resumo da história deste livro, de seu autor, de diversas traduções e edições desde sua redação (no ano de 730) até os dias atuais.

Edição comemorativa a cargo de Wilson H. Shepherd, The Rebel Press, Oakman, Alabama.

O título original era “Al-Azif”. Azif era o termo utilizado pelos árabes para designar o ruído noturno (produzido pelos insetos) que, supunha-se, era o murmúrio dos demônios. Escrito por Abdul Al Hazred (figura ao lado), um poeta louco de Sana, fugido no Iêmen, na época dos califas Olmeias, pelo ano de 700.

Visita as ruínas da Babilônia, e os subterrâneos secretos de Mênfis, e passa dez anos sozinho no grande deserto que se estende ao sul da Arábia, o Roba el-Khaliyeh, o “Espaço vital” dos antigos e o Dahna, “O deserto Rubro” dos árabes modernos. Afirma-se que este deserto é habitado por espíritos malignos e por monstros tenebrosos. Os que afirmam haver penetrado em suas regiões contam coisas estranhas e sobrenaturais.

Durante os últimos anos de sua vida, Al Hazred viveu em Damasco, onde escreveu o “Necrononicon” (Al-Azif), por onde circulam terríveis e contraditórios boatos sobre a sua morte ou desaparecimento em 738. O seu biógrafo do Séc. XII, Ibn-Khalikan, conta que Al Hazred foi assassinado por um monstro invisível em pleno dia, sendo devorado na presença de um número expressivo de testemunhas aterrorizadas.

Contam-se ainda muitas coisas acerca de sua loucura. Ele alegava ter visto a famosa Ilrem, a Cidade dos Pilaree, e ter encontrado, sob as ruínas de uma cidade perdida do deserto, oos anais secretos de uma raça mais antiga que a humanidade. Ele não participava da fé mulçumana, pois adorava umas desconhecidas entidades chamadas Yog-Sothoth y Cthulhu.

No ano de 950, o “Azif”, que havia circulado secretamente entre os filósofos da época, foi ocultamente traduzido pelo grego Theodorus Philetas, de Constantinopla, sob o título “Necronomicon”. Durante um século, e por arte de sua influência, ocorreram certos fatos terríveis, razão pela qual o livro foi proibido e queimado pelo patriarca Michael. Desde então, não temos mais que vagas referências ao livro, mas em 1228, Olaus Wormius encontrou uma tradução para o latim que foi impressa duas vezes, sendo uma no Séc. XV, em letras negras (com toda segurança na Alemanha) e outra no Séc. XVII (provavelmente na Espanha).

Estas traduções não trazem qualquer esclarecimento, de tal forma que somente pela tipografia é que se supõe a data e o local de impressão. A obra, tanto em sua versão grega quanto na latina, foi proibida em 1232 pelo Papa Gregório IX, pouco depois que a tradução latina havia se convertido em um poderoso foco de atenção.

A edição árabe original se perdeu na época de Wormius, conforme foi dito no prefácio (há vagas alusões sobre a existência de uma cópia secreta encontrada em São Francisco, no início do século, mas que desapareceu no grande incêndio). Não há rastro da versão grega, impressa na Itália, entre 1500 e 1550, depois do incêndio ocorrido na biblioteca de uma certa personagem de Salem, em 1692.

Igualmente, existia uma tradução do doutor Dee, jamais impressa, baseada no manuscrito original. Os textos latinos ainda subsistem; um, (do Séc. XV) está guardado no Museu Britânico; outro (do Séc. XVII), se acha na Biblioteca Nacional de Paris. Uma edição do Séc. XVII encontra-se acautelada na biblioteca de Wiedener de Harvard e outra na Biblioteca da Universidade de Miskatonic, en Arkham; há mais uma na biblioteca da Universidade de Buenos Aires.

É possível que existam outras cópias mantidas em segredo; há rumores persistentes de que uma cópia do Séc. XV foi parar na coleção de um célebre milionário americano. Outro rumor assegura que uma cópia do texto grego do Séc. XVI é propriedade da família Pickman de Salem, mas é quase certo que esta cópia desapareceu, ao mesmo tempo que o artista R. U. Pickman, em 1926.

A obra está veementemente proibida pelas autoridades e por todas as organizações legais inglesas. Sua leitura pode atrair consequências nefastas. Acredita-se que R. W. Chambers se baseou neste livro em sua obra “O rei amarelo.”


-Al-Azif é escrito em Damasco en el 730, por Abdul Al-Hazred.
-Traducão grega com o l título de Necronomicón, por Theodorus Philetas, em 950.
-O patriarca Michael o proíbe no ano de 1050 (texto grego). O árabe se perdera.
-Em 1228, Olaus traduz o l texto grego para o latim.
-As edições latina e grega são destruídas por Gregório IX em 1232.
-Em 14... (?), aparece una edição em caracteres góticos na Alemanha.
-Em 15... (?), o texto grego é impresso na Itália.
-Em 16... (?), aparece a tradução espanhola do texto latino.


por H. P. Lovecraft
Tradução de J. Jaegger

Óleo de Cão

Chamo-me Boffer Bings. Nasci de pais honestos, malgrado muito pobres. Meu pai era fabricante de óleo de cão, e minha mãe tinha, ao pé da igreja da vila, um pequeno gabinete, onde eliminava bebês indesejados. Já na minha infância aprendi os processos da indústria.

Não apenas ajudava o meu pai procurando os cães para seu caldeirão, como também minha mãe me encarregava frequentemente da missão de me desfazer dos despojos de seu trabalho no gabinete.

Para me desincumbir desse mister, às vezes precisei de toda minha natural inteligência, posto que todos os agentes da lei da vizinhança se opunham aos negócios de minha mãe. O assunto não tinha injunções políticas, já que os agentes não haviam sido eleitos pela oposição: simplesmente faziam-no por fazer.

Naturalmente, o trabalho de meu pai era menos impopular, embora os proprietários dos cães desaparecidos o olhassem às vezes com desconfiança, o que, por extensão, se refletia em mim. Como sócios, à escondida, tinha meu pai os farmacêuticos da cidade, que quase nunca aviavam uma receita sem que nela constasse ao que eles designavam “Ol. can.”, o remédio mais valioso que já se houvera descoberto. Mas a maioria das pessoas não está disposta a fazer sacrifícios pessoais pelos afligidos, e era evidente que muitos dos cachorros mais gordos da cidade eram proibidos de brincar comigo. Isto feriu a minha sensibilidade juvenil e certa feita dirigiram-se a mim para fazer-me de pirata.

Lembrando-me daqueles dias, não posso, às vezes, evitar o arrependimento, pois, levando indiretamente os meus pais à morte, fui o autor dos infortúnios que profundamente afetaram o meu futuro.

Certa noite, quando vinha do gabinete de minha mãe com um exposto, vi passar, à frente da fábrica de azeite de meu pai, um guarda que parecia observar atentamente os meus movimentos. Embora bastante jovem, eu já aprendera que os guardas só acorriam aos fatos mais repreensíveis, de molde que dele me esquivei, enfiado-me na fábrica de azeite por uma porta lateral, que calhou de estar aberta. Travei a porta de uma vez e fiquei só com o meu morto. O meu pai já se recolhera. A única luz daquele lugar provinha do forno, que ardia intensamente sob um dos caldeirões, espalhando uma profunda luz e lançando reflexos rubros nas paredes. No caldeirão, o óleo estava em indolente ebulição, e, por conta de seu movimento, às vezes exibia pedaços de cachorro na superfície. Fiquei a esperar que o guarda se retirasse.

Mantive no meu colo o corpo nu da criancinha e lhe acariciei ternamente o cabelo curto e sedoso. Ah, como era bela! Já naquela tenra idade eu gostava muitíssimo das criancinhas e, ao contemplar aquele anjinho, quase desejei que a pequena ferida vermelha de seu peito, obra de minha querida mãe, não fosse mortal.

O que eu pretendia era jogar a criança ao rio, que a natureza sabiamente nos legara para tal fim, mas, naquela noite, com medo do guarda, não me atrevi a sair da fábrica de azeite. “Afinal – disse com os meus botões- , não acho que teria importância se eu vier a entorná-la no caldeirão. O meu pai nunca irá distinguir os seus ossos dos ossos de um cachorro. E as poucas mortes que poderão advir da administração de outro tipo de azeite no lugar do incomparável 'Ol. can.' não serão percebidas em uma população que cresce tão rapidamente".

Em suma, dei o meu primeiro passo para o crime e entornei a criança no caldeirão com indescritível tristeza.

No dia seguinte, para minha surpresa, meu pai, a esfregar as mãos de satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera o óleo de qualidade nunca vista, e que este era o parecer dos médicos aos quais levara amostras. Argüiu que não tinha idéia de como lograra tal resultado, pois tratara os cães como sempre o fizera, em todos os aspectos, e eram eles da raça habitual. Considerei que era o meu dever lhes ofertar uma explicação e, notem bem, teria certamente contido o ímpeto de minha língua se pudesse prever as consequências.

Os meus pais, lamentando olvidar as vantagens de combinar os seus afazeres, adotaram medidas para reparar o equívoco. Minha mãe mudou o seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e as minhas tarefas com relação ao ofício cessaram. Já não mais precisavam de mim para que me desfizesse dos pequenos supérfluos e não remanescia a necessidade de atrair os cães à condenação, pois o meu pai renunciou completamente a eles, embora ainda ocupassem o honroso nome no azeite.

Assim, subitamente ocioso, poder-se-ia esperar que eu me tornasse uma pessoa viciosa e dissoluta, mas não foi isso o que aconteceu. A influência benéfica de minha mãe seguiu protegendo-me das tentações que assediam a juventude, e, além disso, meu pai era diácono de uma igreja. Mas, por culpa minha, estas estimáveis pessoas iam ter um fim tão funesto!

Ao experimentar um proveito duplo com os seus negócios, minha mãe se entregou ao mister com uma assiduidade nunca dantes vista. Não apenas se desfazia dos indesejados que lhe eram entregues, como acorria às ruas e becos à procura de criancinhas maiores e mesmo adultos que lograva atrair à fábrica. Também meu pai, amante daquele óleo de melhor qualidade, fornia os seu caldeirões com zelo e diligência. Em síntese: a conversão de meus vizinhos em óleo de cão tornou-se a única paixão de suas vidas. Uma avidez absorvente e portentosa invadiu suas almas e ocupou o lugar da esperança que tinham de alcançar o paraíso, que, por outra parte, também os inspirava.

E se atiraram tão vivamente à empresa que os cidadãos reuniram uma assembleia pública, na qual adotaram resoluções que os censuravam severamente. O presidente deu a entender que os ataques sucessivos contra a população eram recebidos com hostilidade. Meus pobres pais abandonaram a assembleia com o coração partido, desesperados e com as mentes perturbadas. Considerei prudente, de toda forma, não entrar com eles na fábrica de óleo naquela noite e fui dormir lá fora, num estábulo.

À meia-noite, um misterioso impulso ordenou que eu me levantasse e espreitasse por uma fresta do quarto do forno, onde eu sabia que meu pai dormia. O lume ardia vivamente, como se esperasse por uma colheita abundante no dia seguinte. Um dos enormes caldeirões fervia devagar, dotado de um misterioso aspecto de contenção, como se aguardasse o momento de envidar toda as suas energias.


Mas meu pai não estava na cama. Levantara-se e estava de roupas de dormir. Fazia um nó corrediço numa corda vigorosa. Pelos olhares que dirigia à porta do quarto de minha mãe, deduzi perfeitamente o propósito que lhe ia na mente. Imobilizado e mudo pelo terror, nada pude fazer para contê-lo. Subitamente, a porta do quarto de minha mãe se abriu sem fazer ruído e eles se defrontaram, ambos surpreendidos com a presença do outro. Ela também estava de camisola, e levava, na mão direita, a sua ferramenta de trabalho: uma longa adaga de folha estreita.

Minha mãe foi, igualmente, incapaz de abdicar à única escolha que a minha ausência e a atitude hostil dos cidadãos a deixaram. Por instantes, eles contemplaram mutuamente os olhos acesos e, então, lançaram-se com indescritível fúria um contra o outro. Como demônios, lutaram pelo cômodo todo. Meu pai maldizia. Minha mãe gritava. Ela tentava cravar-lhe a adaga. Ele forçava por estrangulá-la com as grandes mãos nuas. Não sei por quanto tempo tive a desgraça de observar este desagradável momento de infelicidade doméstica, mas, enfim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os adversários subitamente se separaram.

O peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam sinais de contato. Por instantes, olharam-se da forma mais hostil. Então meu pobre e ferido pai, sentido sobre si a mão da morte, saltou à frente e, fazendo pouco da resistência que a minha mãe oferecia, tomou-a nos braços, conduzindo-a ao caldeirão fervente. E, reunindo as suas últimas forças, fê-la nele mergulhar. Em um momento, ambos tinham desaparecido e adicionavam seu óleo àquele do comitê dos cidadãos que os haviam convocado, no dia anterior, à reunião pública.

Convencido que estes funestos acontecimentos obstruíam todos os caminhos para uma honorável carreira naquela cidade, abandonei a famosa vila de Otumwee, onde escrevi estas memórias com o coração repleto de remorsos por um ato tão imprudente e que envolve um deveras catastrófico desastre comercial.


24 de outubro de 2013

O Interrogatório de Marie Curlie


Marie Curlie era uma bela camponesa do Midi, na França do século XII, que observada pelo senhor feudal de Aveyron, num de seus passeios pelo campo, resolveu tomá-la como amante.

Durante algum tempo o nobre senhor desfrutou dos encantos da jovem nas tardes campestres, embora esta, sequiosa por mais sexo entregava-se, ainda que as escondidas, a outros camponeses, não percebendo a imensa honra de servir a seu amo.

Em determinada época, este devendo viajar, aplicou o cinto da castidade na garota, tentando reservar os prazeres que ela oferecia só para si. Não suportando o prolongado jejum, a miserável resolveu deixar um dos parceiros violar a proteção vaginal, danificando-a.

Ao retornar da sua jornada o bom Senhor de Aveyron, percebendo a violação do importante lacre passou a interrogar a campônia no “cavalo de pau”, que não resistiu muito tempo entregando o culpado, logo em seguida empalado.

Após o castigo foi recolhida à clausura de um convento de monjas local, onde aprisionada, passou a servir o nobre amante no interior da cela.

Com a morte deste, anos mais tarde, as monjas, invejosas dos gritos de prazer dos amantes nas tardes de amor, resolveram entregá-la aos boníssimos padres dominicanos que serviam fielmente à Santa Inquisição.

Novamente torturada, confessou tudo e foi condenada a morte por emparedamento no próprio convento.


Fonte: Áurea (professora de História da França); Ilustração: Câmara da Tortura.

23 de outubro de 2013

Amor Cigano

Ao lado do velho carroção, Berta remota um cachimbo tão velho quanto ela, que no dizer dos ciganos de sua tribo era tão velha quanto o tempo. No acampamento, ao lado leste das torres do Castelo de Epsnein, a planície desdobrava-se num lençol verde, batido àquela hora pela luz do luar.

Berta apertou mais os olhos miudinhos e fitou um ponto negro que avançava como uma flecha em sua direção. Era Jaino, o coxo, que vinha a toda brida, trazendo-lhe notícias de Zínara.

A velha cigana esperou que o acólito apeasse e então indagou com a voz roufenha, mais se assemelhando a um lamento fúnebre:

- Então, capeta... onde se mete aquela vagabunda?

Jaino abaixou a cabeça, riscou o chão três vezes em sinal de respeito, com a ponta do polegar, e falou excitado:

- Vi-a entrando no castelo pela porta que dá para o lado do rio. Berta retorceu o rosto numa expressão indefinida e os cabelos pardos eriçaram-se. Jaino afastou se temeroso. Sabia que quando aquilo ocorria, Berta entrava em comunicação direta com os seres das trevas!

Depois, olhando a lua boiando num firmamento muito azul, a velha praguejou alto e repetiu as palavras misteriosas da cabala. E num assomo de raiva, berrou para Jaino:

- Vai, desgraçado. Volte para lá e fique vigiando até a hora em que ela sair. Não a deixe vê-lo... e faça como mandei.

Claudicando da perna esquerda, um defeito que trazia de berço, Jaino azulou imediatamente, curtindo no fundo um sentimento de ódio e despeito. Também como os demais de sua tribo, era apaixonado por Zínara e não conseguia resistir aos encantos que sua beleza selvagem expandia.

Aceitara trabalhar de comum acordo com Berta a fim de poder obter a sua cota de vingança... pois desde há seis meses, quando o grupo se instalara próximo ao castelo, Zínara dera sinais de fraqueza evidente... enamorando-se de Robert Wall, filho de Lord de Epsnein. Aquilo motivara revolta geral no selo da tribo, mas ninguém tinha coragem de censurá-la... temendo perder suas atenções. Agora, era chegada a hora da vingança!

Às cinco horas da manhã, Jaino viu o portão abrir-se e por ele deslizar furtivamente a figura esbelta da bela cigana. E seus olhos arderam de ódio e o coração ameaçou sufocá-lo enquanto a mão apertava ardorosamente o cabo de prata do punhal húngaro.

Zínara atravessava agora a metade do campo. Seus cabelos vinham soltos, soprados pela brisa suave da manhã e os raios da aurora tornavam mais excitantes sua pele morena, refrescada pela noite que passara nos braços de Robert Wall.

Jaino lutou consigo mesmo. Sabia o que era preciso fazer... mas faltava-lhe a força necessária. Bateu duas ou três vezes contra o solo e invocou a figura de Berta. Quase subitamente, do canto de uma pequena sebe, viu subir uma labareda arroxeada e sentiu um forte cheiro de alho... Sabia que Berta estava ali em corpo mental. Em pequenas convulsões, viu-se repentinamente envolvido pela chama fria e temeu que fosse perder a consciência.

Zínara estava bem próxima agora. Um instinto secreto advertia-o de que era preciso agir com rapidez e segurança para evitar qualquer reação da parte da moça. Uma palavra de perdão que fosse proferida por ela, quebraria nele as forças do mal que o encantavam. Mas, tal coisa não aconteceu. O que viu depois de um salto felino e de haver sua mão mergulhado de duas a três vezes no peito da cigana foram os olhos vidrarem-se e uma golfada de sangue inundar-lhe o rosto.

Morta, a cigana caiu sem um grito de dor. Seu corpo ficou no chão estendido, enquanto Jaino fugia a toda velocidade em direção ao acampamento.

Iniciavam-se os primeiros movimentos da manhã, agitando a vida da comunidade, quando o rapaz chegou espavorido, banhado em sangue. O primeiro a vê-lo assim foi Dormik, o tocador de flauta e, reconhecidamente, o maior enamorado de Zínara.

- Louvado, Jaino! Que houve? Está ferido?

Tomando de súbito pânico, o rapaz negaceou com a cabeça e, sem prestar atenção ao que dizia, afirmou:

- Oh não! Matei Zínara. Está lá no bosque com o peito aberto!

Nada poderia ter maior força do que aquelas palavras que funcionaram como um impulsionador mágico. Imediatamente toda a tribo foi to-mada de incontido alvoroço. E ali mesmo, iniciaram o julgamento cigano: os mais velhos sentaram no interior de um círculo feito a giz, tendo os jovens à sua volta. A sentença partia do meio do círculo e era atirada contra os mais jovens em torno.

Movendo os lábios em sussurros, os anciãos discutiam. Depois, de acordo com o decidido, era atirado para cima um búzio preto ou branco: o primeiro condenava o acusado à morte; o segundo, bania-o para sempre. Os dois juntos, ao mesmo tempo, significavam absolvição.

A mente de Jaino estava por demais perturbada para prestar atenção a esses detalhes e somente quando o búzio preto foi lançado ao ar, pôde compreender que iria morrer.


Tomado de pânico, gritou por Berta, pedindo-lhe socorro, mas nem uma palha moveu-se. A velha cigana continuava imóvel, sentada no seu canto sem mostrar a menor preocupação pela sorte de Jaino.

Ouvindo a risada da turba, Jaino foi levado a uma árvore próxima, no tombo de um cavalo e tendo a corda passada no pescoço. Num movimento rápido, o carrasco alçou um galho forte e depois de proferidas as palavras do Wandor preparou-se para espalmar o animal, deixando o condenado balançando-se pelo pescoço na ponta da corda. Súbito, alguém lembrou-se:

- Vamos buscar o corpo de Zínara para que esteja presente à execução!

- Não - gritou Berta - saindo do seu horrível mutismo. - Eu mesma irei.

- Como tu, velha bruxa? Não tens forças nem para...

Berta lançou um olhar gelado sobre o audacioso e ele se catou encolhendo-se acovardado a um canto do grupo. Em seguida, a velha sumiu na planície. Mas, a impaciência, o ódio e a revolta gerados no coração da turba não podiam esperar mais. A figura de Jaino era um desafio brutal às lembranças amorosas destruídas com a morte de Zínara. E por que mantê-lo vivo por mais tempo? Sim, por quê?

Um par de mãos vigorosas assustou o animal, fazendo-o sair a galope. Um tranco forte deteve a vítima na ponta do baraço... E momentos antes de expirar para sempre, ainda viu, surpreso, como os demais, a figura esbelta da bonita cigana surgindo da planície como se nada lhe tivesse acontecido... trazendo sobre os ombros o corpo inerte da velha Berta.

Depois, atirando um largo sorriso à todos, a cigana aproximou-se de Jaino, que já exalava o último suspiro e disse baixinho para que ninguém a ouvisse:

- Obrigada, Jaino. Agora poderei viver mais cem anos!...

Só então, Jaino reconheceu em Zínara a voz roufenha e cavernosa de Berta. Mas aí... já era tarde. Tarde demais para arrepender-se!


Conto de Normam B. Peace

Fonte: Lendas e Contos Assombrosos

18 de outubro de 2013

O Senhor de Santamorte

Existe ainda hoje entre os píncaros das montanhas do Cortonese, em terras de Florença, o pitoresco Castelo de Montecchio, todo ele enfeitado de torres e de ameias altas, que lhe emprestam aquele seu ar de soberania que há séculos vem impressionando o transeunte e o turista curioso. 

Muitos foram os seus senhores desde o inglês Hawkwood, que trazia gravado em seu escudo o triste mote: “Inimigo de Deus e da Misericórdia”, até o feudatário florentino, ainda mais triste, que devido à sua natureza bestial, corpulento e sanguinário, levava a alcunha de “O Lobo de Santamorte”, pois quem lhe caísse nas garras tinha morte de santo, pelas crueldades que lhe eram infligidas.

A sua voz era constantemente irada; as mãos sempre prontas a golpear, a matar, a torturar. Os castigos que mandava administrar em suas terras tinham feito daquele homem uma espécie de monstro, que, em comparação, a fera da qual tinha o nome, bem poderia parecer um cordeiro.

E, no entanto, havia também ternura e bondade em sua alma negra, sentimentos, porém, que se tinham esgotado, secado e como que absorvido numa inesgotável revolta contra a sorte, quando lhe morreu a esposa idolatrada, jovem delicada e sensível, que morrera e o deixara abandonado em sua ira impotente contra tudo e contra todos, quando dera à luz o seu único filho Baldo, que o Barão de Santamorte passou a adorar com toda a força de sua alma selvagem e intransigente, reunindo na criança toda a sua faculdade de amar.

As primeiras vítimas de sua revolta contra um destino cruel foram o médico, as enfermeiras e as aias que não souberam defender contra a morte implacável a querida de seu coração e no dia do batizado do pequeno Baldo, ainda pendiam das torres do castelo, os corpos enforcados dos subalternos impotentes que não tinham sabido conservar em vida a suave esposa do seu bárbaro senhor. 

E a sua natureza foi dia a dia mais se enfurecendo e o único raio de sol em sua triste vida era o pequenino Baldo linda criança, inteligente e suave, que lhe lembrava a esposa desaparecida.

Certa madrugada do mês de setembro de 1385, um grupo de cavaleiros e de servos a pé, armados e segurando com força as correias das maltas de cães ganindo, subia por ásperos penedos entre bosques de árvores seculares, os montes do Cortonese.

Era o senhor de Montecchio que mais uma vez se ia entregar à sua preferida distração. Caçar o javali e o cabrito montês. Ao lado do barão cavalgava o pequeno Baldo, de nove anos apenas de idade, e um pouco atrás deles seguia, montando uma mula branca, uma linda jovem chamada Viola, florida camponesa já noiva de Quinto Borghetti (monteiro-mor do barão de Montecchio) e que este havia feito raptar na própria manhã de suas núpcias, pois o barão, prepotente e invejoso, havia declarado ao rapaz que “as mulheres bonitas em suas terras eram para ele e não para os seus súditos”.

Viola vivia assim no Castelo de Montecchio com as regalias e as mortificações de uma cortesã e o sentimento desesperado de uma escrava impotente contra as odiosas exigências de um senhor execrando.

Depois dos guardas, à testa dos batedores e dos servos que conduziam os cães, marchava a singular figura de um homem moço, traços enérgicos, alto e espadaúdo. Era Quinta Borghetti, o “mestre-caçador”, ex-noivo da linda Viola.  O posto era importante para um rapaz tão novo ainda, mas ele tinha realmente grande capacidade e Lupo Montecchio lhe tinha dado também para recompensá-lo do rapto de Viola, embora o Barão de Santamorte pensasse (conforme a mentalidade da época) ter honrado o seu súdito roubando-lhe a noiva!

Era certamente uma brincadeira de muito mau gosto e pelos campos fora, nas granjas e nos casebres montanheses, todos admiravam que um rapaz forte e cheio de ardil como Quinto, se tivesse tão facilmente resignado sob tamanha afronta. Este, porém, procurava esconder até a própria expressão do olhar, sempre esquivo e isolado, sem falar com pessoa alguma, parecia só se ocupar da missão que lhe haviam confiado.

Quando a comitiva chegou finalmente ao lugar designado, dispôs-se imediatamente em atitude de ataque. A caça no devia estar longe, pois os cães começaram a ladrar desesperadamente e logo fizeram saltar fora do esconderijo um javali medonho, o pelo hirto e os dentes arreganhados. Enxotado pelos homens e perseguido pelos cães, o animal enveredou por um estreito caminho ao cabo do qual o senhor de Mortesanta, ladeado por alguns homens armados, esperava-o com a alabarda em punho.

A fera, no entanto, após ter estripado dois valentes rafeiros que tentaram agarrá-la, virou de repente para o lado direito do caminho e desapareceu entre o capim alto grunhindo desesperadamente. Era evidente a falta do mestre-caça, que havia deixado desguarnecido aquele sítio e o barão de Santamorte, enfurecido, vendo fugir a linda presa, prorrompeu aos berros:

— Por todos os demônios do inferno! Quem deixou abandonada aquela passagem? Onde está o maldito Quinto?

O rapaz saía justamente do mato quando, o barão investiu rudemente contra ele:

— Cão maldito de meus cães! Deixaste então aberta aquela passagem?

— Sim, senhor — respondeu calmo o interpelado.

— Insolente! Atrevido! Perdeste certamente o amor à vida, não?

Quinto, olhos fixos no semblante do amo, sorria com desprezo sem dar resposta.

— Ah! É assim? — E mais enfurecido ainda por aquele mudo desafio, o barão gritou para os servos:

— Agarrem-no e ponham-no de joelhos, o dorso desnudo. — E com um requinte de perversidade, voltando-se para Viola, disse-lhe: — Aqui tens o meu chicote... A ti a honra de desfechar o primeiro golpe... Mas com toda a força... Ouviste?

Quem poderia fugir à diabólica vontade daquele homem em tais circunstâncias?

Pálida como cera, a infeliz Viola desceu de sua montaria e aproximou-se daquele seu infame senhor e dono que lhe entregou o chicote.

Quinto não opunha resistência alguma, ajoelhou-se e esperou resignado, todo recolhido num pensamento só.

— Perdoa-me em nome de Deus! — murmurou a pobrezinha ao chegar perto de Quinto, enquanto abaixava o chicote sobre as costas do rapaz.

O golpe parecia mais ser uma carícia!

— Mãos de manteiga! — gritou Lupo Santamorte com uma risada. — Mas os golpes dos guardas eram rudes e logo o sangue começou a escorrer pelas costas de Quinto.

— Mais! Mais! Mais forte — gritava como um possesso o Senhor de Santamorte, seguindo com os olhos turvos e os lábios espumando, o rítmico levantar e abaixar dos chicotes.

O pequeno Baldo, olhos escancarados, olhava alternadamente para o pai e Quinto, sem compreender o que se estava passando.

Viola, apoiada ao tronco de um carvalho, chorava e gemia, sem poder simular todo o seu horror.

— Basta! — gritou de repente o barão — ajudem-no a levantar-se e vamos voltar!

Quinto ergueu-se sem auxílio, pálido, mas firme e seguiu a comitiva entre os homens de armas.

Chegaram ao castelo quando o sino da capela batia as doze badaladas. O sol a pino escaldava, tirando luzes das águas paludosas do vale. Depois de atravessada a ponte levadiça, a comitiva parou no vasto pátio interior que abraçava a torre altíssima, quadrada, dominando os altos muros do castelo. O barão de Santamorte parou o cavalo e voltando-se para Quinto que se achava ainda entre os guardas, gritou-lhe:

— Chega aqui!

Quando o rapaz se aproximou, de olhos baixos, o senhor perguntou-lhe em tom de escárnio:

— E agora, estás ainda tão seguro de ti?

— Sempre! Respondeu este, sem pestanejar.

Todos se entreolharam consternados ante tamanha audácia. O velho fâmulo que guardava a porta da torre desceu os poucos degraus que conduziam ao interior do edifício, deixando a porta escancarada: queria ver de perto o subalterno que ousava responder ao senhor com tanta segurança.

— Como? — berrou o barão de Santamorte, agitando-se sobre o selim como se uma cobra o tivesse mordido. — Como? Será que chegou o fim do mundo ou eu que entendi mal?

— Não, senhor! Vosmecê ouviu perfeitamente bem! — respondeu Quinto com áspera voz e olhando profundamente Viola, que branca como linho, parecia estar para cair de sua montaria.

Foi como um relâmpago! Quinto subitamente deu um salto de gato e agarrando o pequeno Baldo de sobre o seu cavalinho baio, atirou-o sobre os seus ombros como se fora uma rês a ser levada para a feira e correu para a torre.

— Pára! Pára! Prendam-no! Berrava o senhor de Montecchio, enquanto tirava uma balestra das mãos de um armeiro.

— Não! Não atirem que ele se cobre com o meu filho! Maldição! Deixa o meu Baldo! Não podes tocá-lo! Olhem, poltrões, que nada sabem fazer! Canalhas! Ele fechou a porta da torre! E assaltado enfim por um pensamento aterrorizador atirou-se de encontro à porta já por dentro trancada, esperando ainda poder perseguir o louco que lhe roubara o filho.

Instantes depois, como se tivesse voado da rês do chão ao alto do edifício sem tocar com os seus pés os mil degraus da interminável escada, Quinto apareceu entre as ameias da torre a mais de cem metros sobre os lajedos do pátio. Tinha Baldo nas mãos, agarrado pelas roupas, suspenso sobre o abismo, ao fim de seus braços estendidos. Ouvira-se o grito, como um gemido sair dos lábios da infeliz criança que se debatia tal um trapo humano:

— Brasa do inferno! Pára! — berrou o barão de Santamorte alucinado. Far-te-ei lacerar as carnes pela roda de ferro, ou devorar pelos meus cães! Traz-me o meu filho! O meu filho! O meu filho!

Só se ouvia uma longa risada de escárnio e depois uma voz terrível descendo do alto da torre que dizia:

— Por todas as dores, os sofrimentos, as humilhações que infligiste a teus semelhantes, pelas infâmias que cometeste, hoje é o dia da vingança!

O barão recomeçou a proferir injúrias e suas palavras loucas, o seu furor, os seus berros arrefeciam o sangue de quem assistia àquela cena dantesca:

— Ouve-me, maldito! Gritou subitamente o senhor de Santamorte como que tresloucado: — Traz-me o meu filho e serás perdoado, juro-te! Queres ouro? Muito ouro? Terás tudo o que me pedires! Queres a tua Viola? Eu a restituirei. Diz-lhe tu a mesma coisa, Viola! Partirei para longe, muito longe, juntos e carregados de ouro! Não nos veremos nunca mais!

A jovem, de olhos esbugalhados na face branca como cera, parecia estar crucificada de encontro ao muro.

— Barão de Santamoorte — recomeçou a voz implacável do alto da torre — Eu já perdi a minha vida, o meu amor e tudo! Mas só quero que Viola vos restitua as chicotadas que me mandastes dar! Ajoelhai-vos, tirai o gibão e a camisa, depressa, ou deixo cair o vosso filho!

Olhos injetados de sangue, tremendo pela ira e o pavor, Lupo de Santamorte ajoelhou- se no meio do pátio, o torso nu, gritando:

— Vem, Viola! Bate-me! Bate-me com toda força! Quero meu filho! Que se me restitua o meu filho!

A jovem parecia não ouvir mais coisa alguma como se estivesse em estado de sonambulismo.

— Anda maldita! Vem depressa! Tragam-na aqui! Que ninguém se recuse a obedecer! Aquele bandido é capaz de manter a palavra!

Dois armeiros levaram Viola para junto do barão, puseram-lhe o chicote na mão, mas ela não tinha a força de bater.

Lupo de Santamorte já nem gritava, uivava:

— Bate, maldita! Anda com isto! E finalmente, Viola como se despertasse de um pesadelo, bateu com o chicote no lombo nu do tirano.

— Forte! Mais forte! -- gritava Quinto do alto da torre. — Quero ouvir os golpes e ver o sangue escorrer como nas minhas costas!

Viola começou então a bater com todas as forças de suas mãos reunidas até cair desmaiada no chão pela emoção e o pavor.

O barão de Santamorte levantou-se cambaleando, o dorso sujo de sangue, mais derrotado pela vergonha e a exasperação do que pelas chicotadas.

No mesmo instante uma risada ainda mais escarnecedora e louca do que as primeiras ecoou no alto da torre e a mesma voz trovejou:

— Tenho fé nas tuas palavras e agora me rendo!

Dois corpos agarrados estreitamente um ao outro, caíram das ameias da torre descendo com a velocidade de uma pedra, vindo esboroar-se sobre as lajes do pátio numa poça de sangue nobre e plebeu!

A partir daquele trágico dia, o barão Lupo de Santamorte, encerrado em seu castelo, só viveu entre orações e esmolas os curtos dias que ainda viveu neste mundo de enganos.


Texto de Itala Gomes Vaz de Carvalho  em "O Dia da Vingança"

Fonte: A Noite Illustrada - Supplemento Semanal - 02/07/1946.

16 de outubro de 2013

A Condessa Matelda Poppi

..."o vasto castelo, tão cheio de graça e majestade, que foi, no entanto, quadro e moldura de tão hediondos crimes. Os poetas cantaram em rima e versos livres, as noites de amor de Matelda e os apelos desesperados de suas jovens vítimas enviadas ao Criador com o único “Viático” de um traiçoeiro beijo!..."

Nos arredores da República de Florença surgia ainda em 1261, o Castelo de Poppi, que por três séculos confundiu sua história com a da família dos condes Guidi, descendentes de Guido Guerra, o mais poderoso senhor da Toscana, cuja fama de ferocidade valeu-lhe o sobrenome de “Bebe Sangue”, tal era a volúpia de ódio e vingança com a qual lambia o sangue da espada que muitas vezes enterrou no coração de seus inimigos. Aliás, os Guidi foram colocados no “Inferno” por Dante em sua “Divina Comédia”.

As duas famílias, a dos Poppi e a dos Guidi, fundiram-se diversas vezes em núpcias e batizados, de maneira que suas crônicas, aliás, trágicas, misturam-se através do tempo, permanecendo, todavia, mais viva e mais trágica a dos Poppi, com seu formidável castelo medieval reunido por subterrâneos à mansão dos Guidi, que, como esta última, não pôde resistir tão bem à ação dos séculos.

Hoje, quer de um quer de outro castelo, só permanece um torreão quadrado, que os camponeses costumam chamar “A torre do diabo”, pelas lendas que a ela se ligam desde os longínquos tempos dos senhores de Poppi. A viúva de um conde Guidi, chamada Matelda, jovem e magnífica mulher, de olhos verdes e madeixas negras, permanece ainda hoje na memória dos habitantes da região como maldita feiticeira, causadora da morte e do desaparecimento de numerosos rapazes, filhos de famílias modestas, porem honradas, de proprietários rurais e camponeses, que entraram certo dia, ao escurecer, pela grande porta do castelo, tendo atravessado a ponte levadiça, os braços carregados de oferendas campestres, flores e frutos lindos de suas hortas e que nunca mais regressaram para suas fazendas e seus casebres.

Com o tempo, uma lenda atroz veio-se formando no espírito de todos e que devia custar a vida a Matelda. Ela fora a odiosa bruxa de olhos verdes, que nas manhãs luminosas, nas tardes ensolaradas, aparecia, de súbito, sob as vestes de uma camponesa, a trabalhar valentemente ao lado dos camponeses.

Matelda (por Noé Bordignon)
Irresistível sereia sabia seduzir os jovens com palavras mansas, enquanto ajudava a despir a vinha dos cachos de uva roxa, ou amarrar, com tiras de capim seco, os feixes de trigo dourado:

— “Sou a mucama da senhora do castelo. Vim trabalhar hoje porque preciso apanhar sol! Vem ter comigo à noite? Dar-te-ei um amuleto feito com os cachos dela e nunca o teu gado terá a peste! Podes entrar pela porta grande, dizendo que trazes hortaliças e flores para a condessa!”.

O incauto acreditava! Era sempre um dos mais belos e mais robustos rapazes da redondeza e ao cair da noite era ele misteriosamente introduzido no castelo onde sempre chegava carregado de presentes campestres, que lhe eram tolhidos logo ao ultrapassar o limiar do pátio interno da imponente mansão e, olhos vendados, sentia-se guiado, pelo velho guarda que o tinha recebido, por salas e corredores, escadas e terraços, subindo e descendo pelos labirintos da vetusta construção, até um local onde lhe tiravam a venda e ele se via, de súbito, como num conto de fadas, no meio de um quarto luxuosamente mobiliado; tapetes e cortinas, ouros e candelabros, onde os cristais e os adornos de prata se disputavam a glória de jorrar o maior brilho.

Deslumbrado, olhava em redor sem saber o que pensar, quando uma voz melodiosa o fazia estremecer:

— “Não me conheces? Já não te lembras da companheira que te ajudou ontem a amarrar os feixes do trigo?”

— “Mas! eu pensava que vosmecê fosse a criada do castelo?! Eu não sabia! Devo pedir perdão! E voltar!?”

— “Não! Porque agora tu és o meu príncipe e o meu amor!” E, envolvendo o jovem em seus braços de sereia, fazia-o esquecer de tudo o que não fosse aquela sua aventura de “Mil e Uma Noites”!

Tudo, porem, tem um fim e na manhã seguinte a condessa de Poppi despedia com um último beijo o seu jovem amigo:

— “O caminho para saíres do castelo tem todas as portas abertas... Vai!”

— “Até breve?”

— “Adeus!”

O rapaz partia. Conservava ainda nos lábios o sabor dos beijos ardentes e no corpo a lembrança dos violentos abraços. Tinha os membros lassos e a alma como ébria, mas o coração estalava de felicidade e orgulho. O humilde filho de um camponês tinha conseguido selar com seus beijos a boca voluptuosa de uma grande e nobre dama!

As primeiras luzes da alvorada começaram a enrubecer os cimos dos Alpes nevados, trazendo até o vale um vento gélido que fazia estremecer. O guapo rapaz, sangue de povo e músculos de aço, indiferente a qualquer mudança de temperatura, saia da claridade incerta de uma sala, dirigindo-se para a luz de outra sala, atravessando um curto corredor escuro, mas chegando bem no meio do pequeno trânsito, sentia de súbito faltar-lhe o chão sob o peso do corpo e caia num abismo sem fundo!


Quem ouviria o brado de angústia do desgraçado que se afundava nas águas turvas de uma cisterna? E quem poderia imaginar, que nos alegres campos de trigo dourado, que lá em baixo, nas trevas dos calabouços do castelo, uma criatura humana gesticulava numa agonia horrível, procurando agarrar-se a algo que retardasse de uma hora, ou de um minuto, a chegada da morte?

Quem poderia vingar o infeliz rapaz que pagava tão caro preço por uma noite de amor? E a maldição que lhe saía dos lábios no supremo momento perdia-se de encontro à abertura alta do poço, que, de repente, se fechava com o ruído seco de uma mola de aço! A nobre dama saciada, entre seus damascos, ouvindo o longínquo estalar da mola que lhe garantia o desaparecimento eterno de seu cúmplice de amor, que não mais a poderia denunciar ou comprometer, estirava-se nos lençóis com um sorriso de feroz satisfação, enquanto o sol, lá fora, chamava os homens ao trabalho dos campos.

Dias passavam e, de novo, surgia entre os trabalhadores a figura estranha de uma linda jovem, criada da condessa, perscrutando, olhos lânguidos, os jovens que mais lhe agradavam e a nova insídia realizava-se com idêntico epílogo. Muitas foram as vítimas, mas o povo começou a observar e a murmurar. Onde, como desapareciam tantos rapazes? Falava-se do filho de um fazendeiro que nunca mais se ouvira cantar, como de costume, entre os companheiros; de um homem de armas, que não respondeu ao apelo de seus chefes; de um menestrel, que passou como fantasma, atravessando a ponte levadiça do castelo, mas que nunca mais voltou!

A fantasia trabalhava! Nas casas fechadas, à noite, ante a lareira, todos comentavam, discorrendo sobre suspeitos e horrendos casos! Eram tempos cheios de temores e de covardia. Uma palavra, um mote, não podia ressuscitar mortos, mas podia condenar à tortura muitos inventos. Talvez a linda castelã guardasse junto a si, com as suaves e douradas cadeias do amor os favoritos da fortuna? Sim, mas por que nenhum deles dava mais sinal de vida?

De uma feita desapareceu um rapazinho de, apenas, dezoito anos. Trabalhava também nas vinhas de seu pai. Era o benjamim da aldeia. Onde estaria ele? Os pais não se resignaram e grande foi o tumulto, a procura insistente para lograr encontrar o rapaz. Bateram-se campos e florestas, montes e casebres; em vão; ninguém descobrira o menor vestígio da passagem do rapazinho. Nada se encontrara pelas estradas que de Poppi se comunicam pelo mundo fora.

Eis, porém, que alguém deu uma idéia que fez nascer suspeitas:

— “Não teria ele sido chamado para ir ao castelo? E, depois, quem o viu mais sair vivo? Ninguém?

Os ânimos exaltaram-se! Todo o mundo sabia que a senhora de Poppi era perversa e terrível, mas assim não podia continuar, era mister vingar aquele morto, quase uma criança ainda, o benjamim da aldeia!

Muitos camponeses armaram-se. Os sinos tocaram a “reunir”; todo o povoado dos montes e do vale acudiu e num momento encheram-se as ruas, as praças e as estradas de uma multidão hostil e ameaçadora que marchava em silêncio, feições carregadas, rumo ao castelo e suas torres.

Os homens de armas, defensores da vetusta mansão, encerrados em seu nicho de pedra, como fortalezas, não seriam bastante numerosos que pudessem amedrontar aquela “avalanche” humana cheia de ódio e furor e a surpresa do assalto que encerrou logo o castelo como num círculo de ferro, não permitia mais pedir auxílio nem ajuda a ninguém de fora.

A batalha foi áspera entre os poucos armeiros e a multidão que avançava decidida e audaz. Saltaram a torrente que rodeava o castelo e as pesadas portas de carvalho e ferro cederam sob o ímpeto dos machados, das foices e das enxadas. O povo arremessou-se, cego de ira pelos pátios, as escadarias, os corredores e salas e agarraram, enfim, a condessa que se tinha refugiado na capela:

— “Mata! Mata!” — gritavam alucinados; mas não, a morte seria pena demasiado suave para a mulher soberba e encantadora que havia sacrificado tanta mocidade!

— Não matem logo! Esperem! Esperem!”

— “Deve morrer aos poucos!”

— “Que morra de fome!”

— “Sim, morrerá de fome!”

Por cruel ironia a prisioneira foi arrastada e fechada no calabouço da “Torre dos Mantimentos”. Os berros da infeliz, sepultada viva, duraram dias e noites, acabando num gemido surdo e a “Torre dos Mantimentos” foi chamada depois: “A Torre da Fome”.

Assim findou a triste existência de uma criatura linda e sedutora, que poderia ter sido boa, caridosa e humilde, e má na distribuição dos dons que havia recebido de Nosso Pai Celeste.

Surgiram depois artistas e poetas para tirar enredos e lendas, ricos de harmonias e de horrores, assim como peregrinos de todas as partes do mundo, para visitarem o vasto castelo, tão cheio de graça e majestade, que foi, no entanto, quadro e moldura de tão hediondos crimes. Os poetas cantaram em rima e versos livres, as noites de amor de Matelda e os apelos desesperados de suas jovens vítimas enviadas ao Criador com o único “Viático” de um traiçoeiro beijo!

O povo, com o andar do tempo, rebatizou a “Torre do Diabo” e chamou-a “A Torre da Fome”, onde Matelda tinha padecido e morrido à míngua de um pedaço de pão. Ainda hoje, os habitantes daqueles sítios falam de umas aparições que rodeiam a torre nas noites sem lua! É o fantasma de uma mulher perseguida por demônios que a deixam sempre cair do alto da torre em baixo, como a terrível condessa fizera com os seus cúmplices de uma só noite de amor!


Texto de Itala Gomes Vaz de Carvalho  em "A Megera do Castelo"

Fonte: A Noite Illustrada - Supplemento Semanal - 27/06/1944.

O Rei Peste

Os deuses suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio à ralé (BUCKHURST: A Tragédia de Ferrex e Porrex)

Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em. Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum "Alegre Marinheiro".

Embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de frequentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.

Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição.

O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis.

Várias e aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres escritos - dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever - pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, "correr às bombas, ferrar todas as velas e correr com o vento em popa".

Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do "Alegre Marinheiro".

Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o espantoso grito de: "Peste!" A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade.

Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.

Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .

Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.

Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da perpetração de seu roubo.

Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões estentóricos.

Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com carne.

De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão de coisas.

A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por um.

Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse.

Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização especial.

De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto equívoca.

Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de aristocratas falecidos.

Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin chamava "os terrores". Seus queixos, recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto espanto de sua própria enormidade.

Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.

À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.

Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:

- É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.

- Pare com isso! - interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!

À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade, recomeçou:

- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de "Rei Peste I." Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite, aos nossos reais ouvidos... esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.

A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: "Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero", "Sua Graça o Duque Pest- Ilencial", "Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso" e "Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste".

Quanto à vossa pergunta - continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo nome é "Morte".

- Cujo nome é Davi Jones! - exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.

- Lacaio profanador! - exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. - Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.

- Será coisa de absoluta impossibilidade - replicou Legs, a quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.

- Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do "Alegre Marinheiro". De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.

- Pare com isso! - interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. - Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas...

- Este modo de proceder - interferiu o presidente - não está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de hesitação... sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-de-outubro!

- Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! - gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.

O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos para cima.

- Oh, uh, uh! - ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. - Uh, uh, ... Uh, uh, uh... Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o palhaço!... Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha compreensão.

Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.

- Traição! - gritou Sua Majestade o Rei Peste I.

- Traição! - disse o homenzinho gotoso.

- Traição! - esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.

- Traição! - murmurou o homem dos queixos amarrados.

- Traição! - grunhiu o sujeito do ataúde.

- Traição, traição! - berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus esforços de safar-se.

Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.

Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da lareira... e as damas caíram com ataques histéricos.

Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se imediatamente.

O sujeito flutuava no seu caixão... e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.




Fonte: Extraído do site Alguns Textos

Manuscrito Encontrado numa Garrafa

Qui n’a plus qu’un moment à vivre
N’a plus rien à dissimuler.
Quinault, Atys

"Quem tem apenas um momento mais de vida
Nada mais tem a dissimular".

Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.

Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18… do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.

O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.

Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (1) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.

Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos - não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.

A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.

Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites - no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa - o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte - sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.

Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken (2).

Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:

- Olhe! Olhe! - gritou angustiadamente aos meus ouvidos. - Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!

Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e… iniciou a queda.

Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.

Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.

Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.

* * *

Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido - sei que nunca o serei - relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido - uma nova entidade - foi acrescentada à minha alma.

Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.

* * *

Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.

Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.

Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.

Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: “É tão verdade”, costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, “como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro”.

Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a reuma dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.

Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incomodidade. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à unica causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.

Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.

O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.

Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.

Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.

Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.

A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.

Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente… mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão… e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e - meu Deus! - e… a afundar. (3)




Notas:

1. Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)
2. Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)
3. O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio polo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)

Fonte: Extraído do site Alguns Textos