3 de julho de 2016

A Última Expressão de Horror


Respeitosamente, às almas suicidas.

No momento o assassino avançava numa campina. Era uma noite incomum! Havia uma claridade tênue originada por detrás das nuvens rosadas que pairavam sobre o imenso descampado. Um sentimento de incapacidade assomou o coração do homem. Queria chegar à luz, mas - se nada de extraordinário acontecesse - seria impossível. Resignou-se quanto a isso.

Ele lamentava o que fizera minutos atrás. Trazia no peito uma angústia lancinante. Menos dolorido seria um punhal, ele ponderou. Se estivesse vivo, certamente tentaria outro suicídio. Rapidamente aquele local sombrio lhe chegara após se matar.

Cometera o ato às duas da tarde, e no fechar e abrir de olhos, viu-se na planície erma e sombria. Escuridão, solidão e frio. De tanto perscrutar o céu, viu estranhas e imensas aves que efetuavam voos altaneiros. No momento em que tomou conhecimento dos pássaros, começou a escutar gorjeios que se assemelhavam a melodiosos conselhos para que o homem prosseguisse adiante, para o sul. Tudo pareceu sutilmente infernal.

Uma das aves do bando, talvez a maior, pousou no chão e abriu as asas num movimento inócuo. Detrás do dorso passeiforme, uma sombra diáfana esgueirou-se para o chão. O rosto da sombra era um vórtice negro que girava em círculos vaporentos. Trazia um coroa de pequeninos ossos triangulares cravados num opaco crânio desprovido de cabelos. O anfitrião translúcido assegurou que o homem deveria caminhar até atingir a única floresta que havia na planície.

O homem argumentou que não sabia onde estava. E queria essa resposta. A sombra com face vórtica pediu que ele caminhasse até a floresta. Mas o outro redarguiu, solicitando que a nódoa enegrecida o levasse para perto da tênue luz que emprestava uma coloração levemente âmbar em redor das nuvens rosadas.

A coisa que viera no dorso da ave avisou que a luz era inatingível por quaisquer seres que estivessem naquela campina obumbrosa. E incentivou dizendo: “A floresta é o local onde todo desespero e angústia terá fim.” – a voz passava um agouro indefinido.

O suicida avisou que não via nenhuma floresta. Seu interlocutor inumano pareceu ignorar a frase e flanou lentamente até a ave fantástica de bico côncavo, para alçar voo.

Enquanto subia reafirmou: “Continue caminhando nessa direção. Todos que aqui chegam são encaminhados para lá.”

“Quem é você?” – gritou o homem que se matara.

“Eu sou a escuridão”.

O homem arrepiou-se e recomeçou a caminhar. Manteve-se em movimento por mais três horas. As lembranças de sua vida o atormentavam. Julgou ter feito a escolha errada ao se matar. Os problemas financeiros não pediam essa solução. Os problemas amorosos, fora ele quem os criara ao trair sua mulher. Tudo o assombrava como tristes avejões que só incomodam e não causam mal algum.

Deixara para sua fiel esposa a tarefa de criar os dois filhos nascidos no mesmo dia e hora, e que ainda nem andavam. A sua covardia o acossava pungentemente. Era algo insuportável.  

Como se livraria dessa terrível culpa era uma pergunta que se fazia constantemente. “Como suicidar-se outra vez?” – ele se indagou.

Começou a chorar logo depois que a chuva chegou. O caminhar havia ficado mais difícil. Mas não desistiu. Já divisava a floresta. Parecia tão-somente uma árvore com fenomenal copa. Uma copa tão larga e estranha que tocava o chão lamacento numa gigantesca circunferência arbórea.

A poucos metros da floresta, ele parou e olhou para cima. A sombra, voando na ave gorgeante, descia lentamente, em movimentos circulares.

Ainda no ar, ela pareceu indicar o sul utilizando uma forma opaca que poderia ser comparada à mão de um ser humano. A sombra fora obtusa quando disse: “Vai, livra-te do teu desespero ali dentro.” O suicida não se importou com a audácia do interlocutor inumano. Ganhou o ventre da floresta, ao trespassar a espessa e nigérrima copa do primeiro arvoredo.

Lá dentro, o homem viu seres inconcebíveis à compreensão humana. Eram rostos contristados incrustados nos troncos de outras taciturnas árvores. Em que pesasse a falta do desespero, não havia felicidade nos olhos daquelas criaturas. Os braços eram galhos que ficariam parados eternamente, sem direção definida. As pernas, justapostas que estavam, eram somente caules estáticos. As raízes, outrora pés que conduziram aquelas pessoas àquele lugar, suportavam, qual poleiros lúgubres, algumas aves como as que trouxeram a sombra de rosto indefinido, porém menores.

O estranho quis regressar, mas ao virar deparou-se com a sombra parada no exato vão que permitia a saída daquele local infernal. Quis correr e obliterá-la, mas seus pés já estavam bem solidificados ao chão daquela terra. A terra de uma Terra distante e sombria. O extremo do Paraíso. Assim, o suicida só pode sentir a mutação de si. E enquanto isso, a sombra passava por outra transformação. Flutuando, ela desenvolvia lenta e horrivelmente o rosto do autoassassino.

O desdobrar dos fatos foram apavorantes. O vórtice facial da sombra havia sumido. No lugar, o rosto tristonho e amargurado do suicida fora emoldurado pela coroa de ossos. Por horríveis momentos, a sombra fitou-o com enorme indiferença e desprezo. Pouco a pouco a massa umbrífera evoluiu para a invisibilidade.

A tudo o homem viu com medo. Mas ainda conservava em seu interior a angústia que se esvaía lentamente durante a metamorfose arbórea. Em minutos, ele estaria livre dos escuros sentimentos que lhe acompanhavam.

Mas antes teve a certeza que era o momento de acertar as contas que sempre ficam em aberto depois de um suicídio. As contas que o suicida crê que serão perdoadas após a morte.

Então, o horror sobreveio como um raio numa noite chuvosa. “Por quanto tempo ficaria ali? Ad eternum?” – ele se indagou.

A esperar pelo fim, restaria, apenas, uma face, uma última expressão da alma humana paralisada no tempo. Não haveria outro suicídio. Haveria, sim, apenas a última expressão de horror.


Por Pedro Pantoja


A Última Execução do Carrasco de Nantes


Sou filho do ferreiro Alphonse e de Nelly, uma ex-cortesã da taverna dos prazeres. Mamãe deveria morrer em alguns dias. Está muito mal e vem sofrendo demasiadamente com a lepra. Uma peste que ataca a tez e impinge círculos purulentos por todo corpo. Mas ela ainda nutre alguma esperança. 

Papai se sentou na cadeira de rodas, um hediondo patíbulo, e nunca mais se levantou. Uma viga de ferro caiu sobre suas costas, tornando-o aleijado para todo o sempre. Agora, espera – ansiosamente - a morte escolhê-lo como o próximo. Também é leproso! Ele quer morrer, ela quer viver.

Mas essa não é minha história, pois dela, a morte faz parte. Sempre andou ao meu lado, ombreada comigo. As duas, a morte e minha história, estão severamente agrilhoadas.Sou carrasco há quatro décadas e meia. Recebi a alcunha de Vorace, o Carrasco. Assim, o falecimento de outrem, mormente larápios, homicidas, adúlteros, prostitutas, estupradores e os que são afeitos ao incesto há quarenta anos e meio saiu de minhas vetustas mãos. E aconteceu de diversos modos: guilhotina, golpes de machado na nuca, afogamento, esquartejamento etc.

Assumi o ofício, que ninguém logrou ficar por mais de uma execução, numa época cuja violência alastrava-se rapidamente por Nantes. Naquele tempo, os oficiais de justiça sujeitavam qualquer do povo à função de verdugo. Escolhiam um munícipe a esmo (diziam que era sorteio, mas não estou de todo convencido) e nomeavam-lhe à função para efetuar a mórbida labuta.

Certa feita, um homem fora arregimentado no meio da rua e impelido a um tablado de extinção humana, onde uma mulher seria executada. Sua cabeça seria decepada aos olhos dos habitantes de Nantes. Não me recordo com clareza, mas no cair da noite souberam que a condenada tinha parentesco com o homem que a matara. Os parentes não se reconheceram porque os dois vestiam capuzes.

Foi no dia posterior, sob juramento de morte, que fui declarado verdugo oficial do governo local. A vaga ficara em aberto por quase um ano e os poucos que se aventuravam, desistiam após a primeira execução, quando não antes.

Jurei servir à França, com meu tétrico ofício, onde precisasse e contra quem fosse necessário. Executei muitas pessoas em praça pública, mas há alguns anos as execuções se restringiram às residências – ou, em pior caso, onde o sentenciado fosse encontrado, mesmo que fosse em público ou dentro de algum templo religioso - dos que viviam à margem da Lei.

Há alguns minutos, guardas da intendência de polícia chegaram à minha porta. Trouxeram-me uma epístola com o novo decreto do Prefeito de Nantes. Do documento, li apenas o parágrafo que condena à morte, com investidas do machado na nuca, os acometidos pela lepra. Há, apensado ao decreto, uma lista com cinquenta e sete nomes arrolados à execução. O ferreiro Alphonse e a ex-cortesã Nelly estão listados para a extinção.

Não sinto pelo meu pai, pois o homem tenciona morrer o mais rápido possível. E a execução ser-lhe-ia como dádiva, uma libertação da paraplegia. Mas mamãe... mamãe ainda luta para viver. Entretanto, serei profissional a ponto de executá-los, mesmo porque não há cura para a lepra e eu, quando abracei a profissão, jurei que abateria qualquer um que me fosse designado fazer. E se não o fizesse, seria guilhotinado em praça pública.

O mais comovente é a extensão do decreto que me obriga a atear fogo aos cinquenta e sete cadáveres. Isto é, nenhum irmão ou neto ou filho poderá enterrar seu ente querido dignamente, pois todos serão sepultados, já crestados, na vala comum. Depois de toda esta mixórdia infernal, solicitarei minha aposentadoria.


Por Pedro Pantoja


O Carrasco de Nantes


Eu retornava a Nantes, após uma prolongada ausência na Valônia e na Flandres batava, quando dois oficiais de justiça avançaram sobre mim e, sem outras palavras, me conduziram à praça de execuções, onde o patíbulo já estava armado.

Subiram-me ao cadafalso. Tremi de pavor. Mas, quando me enfiaram cabeça abaixo o capuz vazado nos olhos, respirei aliviado. Eu seria o executor, não a vítima. Nestes tempos, não havia em Nantes o carrasco oficial e a função de verdugo era exercida por cidadãos, arregimentados através de sorteio.

Entre verdugo e vítima, é evidente que eu preferia a primeira condição. Por isso alegrei-me, embora nada houvesse de agradável em decepar a cabeça de larápios ou prostitutas.

Cumpri fielmente o meu encargo, embora eu não pudesse saber quem era a vítima. A alma piedosa do alcaide de Nantes, avessa a execrações maiores que as ordinárias, fizera decretar que o executado teria a cabeça coberta por um capuz, semelhante ao do carrasco, mas sem orifícios. O corpo seria entregue, depois, aos familiares, mercê da necessidade de um enterro cristão.

Retornei a casa, portanto, com as mãos sujas de sangue. Procurei pela minha companheira, mas não a encontrei. E, quando anoitecia, a carroça mortuária parou defronte à minha vivenda. Dois piedosos beleguins fizeram entrar um corpo de mulher, que estenderam à mesa. Um terceiro trazia a cabeça da desgraçada envolvida no mesmo capuz com que fora executada.

Ao puxar o capuz pela extremidade, o beleguim revelou a face convulsa de minha mulher. Fora eu que, sem que o soubesse, a executara.

- Furto? - perguntei, em prantos.

- Fornicação – respondeu o beleguim.

Então cuspi na face do cadáver e saí de Nantes para nunca mais voltar.


Por Mephisto


10 de novembro de 2013

A Igreja do Diabo

De uma ideia mirífica

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. 

Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua Igreja? Uma igreja do Diabo era o meio mais eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, concluiu ele. Escritura contra Escritura, Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isso, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

Entre Deus e o Diabo

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter uma vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai.

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu me proponho a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor - a indiferença, ao menos - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralista do mundo. É assunto gasto; se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias dos seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

A boa nova aos homens

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para o meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"...
O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?

Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude precisa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos.

Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo o caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do teu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniário, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!"

A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratava de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi escrito no livro da sabedoria.

Franjas e franjas

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.

O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela, solitário; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das sua ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pode crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análogo ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.


Conto de Machado de Assis